sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Os torturados, os torturadores, a anistia (Pedro do Coutto - Tribuna da Imprensa)

O debate político aberto entre os ministros Tarso Genro e Nelson Jobim sobre a extensão da anistia também aos militares, policiais e sombrios voluntários da ditadura que praticaram torturas durante os anos de chumbo se, sob o prisma legal é inócuo, pelo ângulo moral leva a uma análise da filosofia da própria lei.

O ministro da Defesa quer evitar problemas nos quartéis, portanto impedir que um sentimento de culpa aflore mais de vinte anos depois como no romance da Dumas pai. O da Justiça deseja debater algo que precisamente não se identifica. Mas o confronto entre as duas correntes que representam remete à análise a que há pouco me referi. Vamos por etapas. Em primeiro lugar, só pode haver torturador se houver torturado. A tortura, ninguém nega, é o que de mais hediondo e covarde pode existir. Não se trata de luta. Trata-se de martirizar os que estão presos e absolutamente subjugados.

Não há abertamente quem possa defender uma coisa dessas. Lembro a definição magistral de Santiago Dantas para as situações indefensáveis: nenhuma posição é legítima, dizia ele, quando aquele que a ocupa não pode dizer seu verdadeiro nome. Os torturadores estão neste caso. Processos contra os que praticaram torturas não creio que produzam reflexos concretos, a não ser uma condenação política do passado recente. A lei de anistia, como colocou Jobim, homem sempre envolvido em contextos difíceis, abrange os torturadores, já que anistia (leio no Houaiss) significa tornar impuníveis os criminosos. Mas a questão não é tão simples.

Pode se tornar inoportuna para o presidente Lula, mas para o País não é tão fácil. Vamos por partes. Quais são os diplomas legais que se referem à anistia depois do golpe de 64 que derrubou o presidente João Goulart? São apenas dois. A Lei 6.683, originária de mensagem do presidente João Figueiredo ao Congresso, aprovada pelo Legislativo e sancionada por ele a 28 de agosto de 79, e o artigo 8º das Disposições Transitórias da Constituição de 88. Nenhum outro.

Em setembro de 2002, surgiu o Regime do Anistiado Político, transformado na Lei 10.559 pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Porém aí é o estatuto, não trata de anistia em si. Refere-se a indenizações, o que deu margem a reparações verdadeiras, mas também a igual número de fraudes. Voltemos à anistia. Diz o Dicionário Enciclopédia que leva o nome de Antonio Houaiss: "Ato do poder constituído que declara impuníveis ações praticadas por motivos políticos, anula condenações e suspende diligências. Diferente do indulto, que suprime a execução da pena, sem suprimir a condenação. A anistia anula a punição e o fato que a causou".

Agora passemos ao artigo 1º da Lei 6.683: "É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 61 a 15 de agosto de 79 (data da mensagem ao Congresso), cometeram crimes políticos ou conexos, crimes eleitorais, ou tiveram seus direitos políticos suspensos". Vejam os leitores, agora, o que diz o artigo 8 das Disposições Transitórias da Carta de 88. No parágrafo 2º: "Estende a anistia (de 79, portanto) aos funcionários públicos, trabalhadores particulares, servidores das empresas estatais e aos representantes sindicais".

Logo em seguida, no artigo 9º, é facultado aos abrangidos pela anistia requererem ao Supremo Tribunal Federal o reconhecimento de direitos e vantagens interrompidos pelas punições. O que se deduz logicamente de tudo isso? Que a anistia, de fato, não se aplica automaticamente aos torturadores, no sentido de impedir que sejam processados judicialmente, a menos que os acusados se declarem incursos na prática de crime. Se houver tal reconhecimento explícito, aí sim, passam a ter direito à impunidade com base no artigo primeiro da Lei 6.683, assinada pelo general João Figueiredo. Não pode haver dúvida quanto a isso.

Se não praticaram crime, não podem escudar-se na anistia. Pode ser uma redundância, algo que colide com a lei de menor esforço, mas na realidade a filosofia do conjunto legal que manda esquecer a alucinada aventura da guerrilha e os sórdidos porões do passado conduz o raciocínio a este panorama. Está na lei, está na Constituição. Encontra-se na consciência brasileira, sintetizada na obra monumental "Tortura Nunca Mais".

A tese de Tarso Genro é polêmica, sustentada em termos genéricos destinada a separar o comportamento dos agentes públicos da conduta daqueles que se lançaram a uma aventura desesperada contra o poder das armas. Não compreenderam, inclusive, que, quanto mais atentados praticassem, maior seria - como foi - a repressão.

Conduziam o debate e o impasse que durou quinze anos (de 64 a 79) a um plano absolutamente crítico de ruptura. Só contribuíram para fortalecer a ditadura militar, o ciclo dos generais no poder. A longa noite de arbítrio, da exceção, do abalo à democracia brasileira. Mas estas são outras questões. A anistia, pelo que se encontra na lei e na Constituição, leva a um ensaio jurídico sob vários de seus aspectos.

Anistia, como também se referiu Houaiss, conduz à amnésia, portanto ao esquecimento, ao ato de virar a página, encerrar o capítulo. Mas nem por isso, penso eu, deve deixar de merecer um enfoque atual, objetivo, concreto e inteligente. Pena que não haja mais juristas como Afonso Arinos de Melo Franco, Nelson Hungria, Santiago Dantas, Miguel Reale. Deixo o tema para Aires de Brito, Celso Melo e Elen Gracie

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