segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O "inominável" e a sua direita raivosa

Inominável, obviamente, é George W. Bush. Ele viu seu nome e imagem desaparecerem na convenção, como acontecia com os desafetos de Stalin na Rússia, depois de ter falado terça-feira via satélite aos republicanos. Mitt Romney o mencionou uma vez; Rudy Giuliani e a vice Sarah Palin, nem isso. Pode até não dar certo no final, mas a campanha tenta expurgá-lo e também afogar a chapa democrata no próprio sucesso - como refém de armadilha insólita.

Vítima do próprio sucesso, na trama republicana, Barack Obama é pintado como "arrogante" e "elitista", além de "celebridade" como Britney Spears. A base desse esforço tende a ser - de novo, como ocorre desde 1992 - a guerra cultural e religiosa alimentada pelo conservadorismo social do sul e meio-oeste. No confronto de 16 anos atrás, não funcionou: George Bush I subverteu o modelo. E seu adversário, governador sulista Bill Clinton, empurrava para a direita o Partido Democrata.

Atrelada à direita cristã, a campanha Bush-Quayle refugiou-se em factóides - como o ataque social-conservador ao eixo Nova York-Califórnia, acusado de envenenar o país com o lixo da TV, onde Murphy Brown, num seriado, teve filho sem se casar. Manchete do tablóide "Daily News" de Nova York: "Quayle to Murphy: You, tramp" (Dan Quayle para Murphy: sua vagabunda". Apesar de cair no ridículo nacional, o vice de Bush insistiu no sermão até o fim.
Grávida sim, vagabunda não

Agora é diferente. A própria filha da evangélica Palin declarou-se orgulhosa da filha, solteira e grávida como Murphy Brown, mesmo tendo garantido que vai se casar com o pai da criança. Em 1992 o velho Bush esgrimia a imagem de herói da II Guerra e explorava o tema "caráter". Desqualificava Clinton, exposto por ele como "dodge drafter", por ter buscado proteção para escapar da guerra do Vietnã.

Com o primeiro Bush, no entanto, o tiro no "caráter" acabou saindo pela culatra ao ficar confirmado o envolvimento dele, como vice de Ronald Reagan, no debate interno da Casa Branca sobre a troca de armas por reféns com o Irã, escândalo investigado pelo promotor independente Larry Walsh. Bush dizia não ter estado na reunião decisiva e os secretários de Estado e da Defesa garantiram o contrário: ele estava lá e, contra os dois, apoiou o plano ilegal desastrado.

Na eleição seguinte, 1996, o casal Clinton era o alvo de outra investigação, a de Whitewater. A oposição republicana tinha tomado, dois anos antes, o controle das duas casas do Congresso mas o candidato presidencial Bob Dole, também com biografia de herói da II Guerra, perdeu a eleição, em parte por causa dos excessos da direita religiosa e da Coalizão Cristã criada pelo reverendo Pat Robertson.
McCain: "sou criminoso de guerra"

Ressabiado com o papel conspícuo da Coalizão Cristã antes, Bush filho achou em 2000, com base nos erros do pai e de Dole nas campanhas anteriores, que devia neutralizar os reverendos Robertson e Jerry Falwell. Isso só não ocorreu por causa da derrota na primária de New Hampshire para John McCain: assustado, Karl Rove pediu socorro a fundamentalistas cristãos para nocautear McCain na primária seguinte, na Carolina do Sul.

O lado irônico daquele confronto (Bush II contra McCain) foi Rove inverter em 2000 a equação de 1992: tinha de eleger um "dodge drafter" que buscara a proteção dos amigos do pai para não ter de lutar na guerra do Vietnã; e atacar o rival dele, McCain, prisioneiro no Vietnã cinco anos e meio, acusado no submundo da campanha de ter assinado confissão sob interrogatório brutal (com tortura) do inimigo norte-vietnamita.

Quem sabe hoje nos EUA que McCain, sob tortura, assinou a tal "confissão"? A mídia sabe mas não diz. E mais: ele se disse "criminoso de guerra" por ter bombardeado, como piloto da Marinha, aldeias e populações civis nas proximidades de Hanói. Três décadas depois (1997), sem tortura, repetiria a mesma coisa em entrevista ao "60 Minutes" da CBS: "Sou um criminoso de guerra. Bombardeei mulheres e crianças inocentes". Declação corajosa, convenhamos.

McCain sabia ter sido errado o que fizera. Três meses antes da derrubada de seu avião, um disparo acidental em seu porta-aviões matara 132 marinheiros. Ainda abalado, ele foi entrevistado em Saigon por um repórter do "New York Times" e afirmou: "Agora que vi o que as bombas e o napalm fizeram às pessoas no porta-aviões, não estou certo de que concordo em lançar essas bombas no Vietnã do Norte".
Entre a percepção e a realidade

Outra declaração corajosa, até por ser ele neto e filho de almirantes, altos chefes militares da Marinha (o pai foi comandante de operações navais na área do Vietnã à mesma época em que o filho cumpria missões de bombardeio no norte). Nem por isso deixou de fazê-la. Ao ter o avião derrubado, foi socorrido por civis vietnamitas, que o salvaram de morrer afogado no rio onde o aparelho caíra.

Agora sua candidata a vice - Sarah Palin, versão evangélica impossível de Murphy Brown - referiu-se à generosidade de McCain em viagem posterior (na década de 1990) ao Vietnã: ele falou com civis que ajudaram a resgatá-lo após a derrubada do avião e perdoou os que o torturaram na prisão, disse ela. Ora, mesmo tendo sido torturado, McCain sabe que deve a vida a civis bombardeados por ele, que o tiraram a duras penas de dentro do avião, no rio.

As contradições envolvendo fundamentalismo cristão, social conservadorismo, patriotismo e patriotadas, heroismo e falso moralismo, elitismo, arrogância, feminismo e outras questões sugerem mais algumas observações que ficam para outra coluna. Até porque os temas continuarão nos próximos dois meses, com a promessa de mais manipulação e inversões surpreendentes.

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